sexta-feira, março 21, 2003
George
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Público, Sexta-feira, 21 de Março de 2003
"George" era o título da revista política fundada por John Kennedy Jr., filho do eternamente lembrado Presidente Kennedy. O nome escolhido para a revista reportava ao do primeiro Presidente dos Estados Unidos, George Washington, e, na visão do seu criador, isso queria significar um regresso à reflexão sobre os temas fundadores da grande nação americana. A visão da "George" era a visão de uma América profundamente livre e liberal, onde o princípio essencial de qualquer sistema democrático, que é o do respeito pela vontade da maioria, jamais poria em causa outro princípio de sobrevivência democrática: o respeito pelas opiniões minoritárias, por mais marginais que elas fossem, de Bukowsky a Chomsky, de Chaplin a Frank Lloyd Wright. Talvez John Kennedy tenha sido o último Presidente representante dessa América livre nos princípios constitucionais e liberal nos valores, o último Presidente a quem (apesar das chantagens de J. Edgar Hoover) a opinião pública e as instituições consentiram a liberdade de ter uma vida pública, que era sufragada, e uma vida privada, de que não dava contas.
Hoje, tudo isso está morto: Kennedy, o seu filho, a "George" e esse espírito da "terra dos homens livres", que muitos de nós aprendemos a amar e a admirar. Talvez um dia tudo isso volte ou talvez esteja sepultado para sempre e nos reste apenas a nostalgia das grandes auto-estradas do Sul e das conversas espontâneas nos cafés das bombas de gasolina onde esse sentimento de liberdade era quase respirável, talvez nos reste apenas a nostalgia de um Watergate, onde tantos de nós aprendemos de verdade o que era o jornalismo e o que era a democracia. Mas, por ora, triunfou a América da "maioria moral e silenciosa", a que Nixon apelou antes de tempo, a América do fanatismo religioso, a América da devassa da vida alheia e das virtudes hipócritas, a América que se imagina a nova Roma, sem o direito romano e sem a herança cultural grega.
É por isso que, quando hoje em dia se discute muito o pró-americanismo e o antiamericanismo e se acusa de antiamericanismo todos os que são contra esta guerra punitiva no Iraque, é preciso não esquecer que a América mudou e que, portanto, é forçoso distinguir de que América se fala. Esta América profundamente reaccionária e anti-social, dos pregadores evangélicos, dos produtores de petróleo e dos fabricantes de armas que precisam de ser experimentadas, gastas e vendidas, esta América de Rumsfeld, de Cheeney ou do novo George, em cujo rosto se inscreve de forma impressionante uma singular e devastadora estupidez, em relação a esta América, sim, eu sou antiamericano na exacta medida em que sou fiel à outra, que conheci.
A desgraça de Durão Barroso é que ele não conheceu essa outra América, da liberdade e da tolerância. Na altura em que essa América existia ele era antiamericano, em nome do estalinismo (sim, já sei que foi um pecado de juventude, mas nem todos foram "jovens" até tão tarde ou nem todos se puderam dar ao luxo de uma juventude tão irresponsável e tão curiosa na génese da formação política). E, não tendo admirado a América dos valores, ele compensa agora com este entranhado amor à América das falsas virtudes. Quando, na cimeira das Lajes, ele se virou para Bush e lhe disse "George", num tom que pretendia íntimo e desprendido para impressionar saloios nacionais ou jornalistas estrangeiros à caça de "fait-divers", ele nem se deu conta a que extremo rídiculo tinha chegado a sua figuração activa em toda esta triste história. O "George", ao menos - talvez porque já não se lembrasse do nome -, não respondeu "Thank you, Zé", assim como não chamou "Zé Maria" nem "Tony" aos outros. Alguém preventivamente lhe explicou que o tom não deveria ser o de um fim-se-semana entre amigos no rancho do Texas, mas sim o da gravidade mínima exigível a quem anunciava ao mundo que acabavam de proclamar a superioridade da sua vontade e da sua força sobre a Carta das Nações Unidas e que em breve esse maravilhoso arsenal tecnológico de "cluster bombs", "E-bombs", "MOAB-bombs", bombas perfurantes, aviões invisíveis, mísseis-ainda-mais-inteligentes - e, se necessário, como o confessaram os ministros da Defesa inglês e americano, bombas nucleares - se abateria sobre o Iraque, para "libertar" o seu povo, levar a democracia por contágio a todos os vizinhos, excepto Israel, e "redesenhar" o mapa político do Médio Oriente. Tudo isto sobre um deserto de cadáveres de inocentes, de danos colaterais imprevisíveis e talvez de novo extermínio dos curdos à mão dos turcos - "so may God continue to bless the United States", tal como rezava o teleponto da Casa Branca, segunda-feira passada.
Talvez Deus continue a abençoar os pobres de espírito e permita que haja um milagre nessa terra bíblica do Iraque. Talvez os turcos não aproveitem para pôr um pé no Curdistão, talvez os israelitas não aproveitem para continuar a invadir e a matar palestinianos livremente nesses territórios ocupados - de que as poucas resoluções da ONU que escaparam ao veto dos Estados Unidos os obrigaram a abrir mão há longos anos -, talvez Bassorá e Bagdad não fiquem reduzidas a escombros, talvez as desprezadas Nações Unidas consigam acorrer aos feridos, aos refugiados e aos que morrem de fome, talvez Saddam fuja na 25ª hora, talvez tudo acabe depressa e com poucas mais consequências do que o universalmente saudado fim do seu regime. E talvez depois disso os estrategas políticos desta campanha consigam inventar líderes iraquianos credíveis e respeitáveis para sucederem a Saddam, de modo a que o Iraque "libertado" não seja apenas sinónimo de um Iraque ocupado pelo exército dos Estados Unidos.
Mas, depois, vai ser preciso acorrer ao Irão, onde a ameaça à paz mundial é infinitamente mais séria e consiste em bombas nucleares, à Síria, onde o terrorismo sempre teve acolhimento, ao Iémen, ao Sudão, à Somália, à Líbia e, de uma forma geral, a todo o mundo árabe, para quem a justiça do Ocidente se exerce sempre contra os seus e nunca contra os outros. E, no fim disto tudo, não se esqueçam, é preciso ainda deitar a mão a Bin Laden e esperar que ele, entretanto, tenha permanecido em sossego - ou, no que a nós respeita, que Portugal agora, como garantiu o primeiro-ministro, esteja infinitamente mais seguro do que estava antes de ele tratar por "George" o Presidente dos Estados Unidos.
Confiemos, então, no milagre, visto que tudo o resto falhou - como, aliás, era cristalinamente previsível para quem tenha seguido com atenção a agenda política de George W. Bush, desde que ele chegou à Casa Branca. Mas, pensando em como é perigoso um mundo onde a arrogância mais ignorante impõe as suas leis e o seu mando, confesso que não sei que desejar: se um desastre que puna merecidamente esta aventura e fique como lição para o futuro, se o milagre de uma guerra rápida e relativamente indolor, que poupe as vidas de inocentes, mas que deixe como vítimas mortais o direito internacional, a ONU e a ideia de uma Europa dona do seu próprio destino, e que assegure o triunfo e a reeleição do novo César, prolongando estes tempos sombrios na América e no mundo.
P.S. - Passou quase ano e meio desde que anunciei aos leitores do PÚBLICO que "ia ali e já vinha". Não sabia, então, quanto tempo demoraria esse "já", mas sabia que algum dia ele aconteceria, porque assim mo impunha, antes de mais, o reconhecimento pelas incontáveis e comoventes mensagens de leitores que recebi e que me marcaram como poucas vezes na vida. Repito o que então disse: nenhum jornal, nenhuma revista em Portugal, tem leitores como os deste jornal. Não fosse por isso, e eu teria continuado agora na posição infinitamente mais tranquila de ser apenas um entre eles. Retomemos, então, essa caminhada, até ao dia em que sentirem que "perdi a mão".
salamandrine 12:10
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